quinta-feira, 8 de março de 2018

Trezentas

Trezentos destinos, trezentas histórias. Trezentos caminhos, trezentas mulheres. Mães, filhas, irmãs, primas, amigas, esposas. Médicas, advogadas, psicólogas, terapeutas, contadoras, jornalistas, empreendedoras, artistas. Guerreiras, batalhadoras, sofredoras, amadas, amantes, decepcionadas, esperançosas, sonhadoras. Trezentas mulheres que se uniram por uma causa: sororidade. 

Tantas lágrimas, tantos sorrisos, de todas as partes, de todas as idades. Reunidas, elas sentem a força que só as mulheres podem emanar. 

Uma sonhava com uma família. Casou com o primeiro namorado, o primeiro amor, estudaram juntos, trabalharam juntos. Tiveram lindos filhos. Um dia ele deixa a mulher para viver uma nova aventura. A vida que ela construiu ao lado dele desmorona. Não seria tão mal se ela não sofresse o abandono dos filhos, porque ela, como mulher, tem que criá-los, a partir de agora, sozinha. Aceitar uma pequena contribuição financeira por parte dele e a visita a cada quinze dias, quando ele não estiver ocupado com sua nova vida. Ela, a mãe e esposa dedicada por tantos anos, é agora a megera que só quer saber do dinheiro dele. Louca.

Outra era muito famosa, independente e livre. Tinha uma excelente carreira, não queria ter filhos. Apaixonou-se por um colega de trabalho, só queria namorar e ser feliz. Namoraram e foram felizes por um bom tempo. Cada um com a sua vida, independentes, mas compartilhando o que gostavam, jantares, viagens, passeios. Até o dia que ela fez algum comentário que o desagradou e ele lhe deu um soco no rosto. O olho ficou roxo. Não podia ser, tudo sempre tão perfeito. Foi um equívoco, ele pede desculpas e ela aceita. Mas a cena volta a se repetir, cada vez mais frequentemente. Tapas, socos, empurrões. Ela não aguenta mais. Resolve denunciá-lo e deixá-lo. Como assim deixar tão bom partido, apaixonado por ela? Louca.

Uma mais velha tem um casamento tranquilo e uma carreira estável. Mas antes de chegar até ali sofrera nas mãos de uma mãe tóxica, que abusava dela psicologicamente. Ela não valia nada aos olhos da mãe. Era sempre menos inteligente, menos bonita, menos esperta, menos tudo que qualquer outra pessoa. A mãe colocava nela todas as frustrações que teve na vida. Para se livrar de tanta humilhação e sofrimento, a única forma que encontrou foi cortar a mãe de sua vida. Mas mãe é mãe, que exagero, é coisa de mãe, mãe é assim mesmo. Não se deve dar as costas para a própria mãe. Louca.

Outra bem jovem, órfã de pai e mãe, viveu em orfanato e depois foi adotada por uma família muito rica. Davam-lhe de tudo. Era bonita e quando o corpo começou a desenvolver o pai adotivo começou a querer dormir no seu quarto. Ia todas as noites, depois que a esposa dormia, "visitar" a filha. Abusava dela e dizia que se ela contasse a alguém estaria perdida, afinal de contas, era uma pobre órfã e perderia tudo que tinha. Passou cinco anos vivendo assim. Aos dezesseis fugiu de casa e foi viver na rua. Conheceu artistas e aprendeu com eles, tornando-se artista também. Mas trocar o conforto de um lar, tudo o que fizeram por ela pra fazer arte nos sinais? Louca.

Não era a única das trezentas que tinha sofrido abusos. Uma delas sofreu na escola. O professor "convidava" as alunas para sair em troca de boas notas. Ela não queria porque sabia que podia tirar boas notas sem precisar sair com ele. Então ele deu-lhe uma nota baixa, mesmo ela tendo acertado toda a prova. Quando foi questioná-lo, depois da aula, sobre sua nota, o professor trancou a porta e a estuprou. "Não quer por bem, vai por mal", ele disse. Ela tentou denunciá-lo. Foi à diretoria da escola. Como assim? Um professor renomado como ele não faria isso. Vamos transferi-la de escola. Louca.

E a que namorava o colega da faculdade. Eram um casal apaixonado. O pai dele tinha ótimos planos para o futuro do jovem. Ele só queria transar sem camisinha, ela tinha medo de engravidar. "Só uma vez, não vai acontecer" ela a convenceu. E aconteceu. Ela engravidou. E agora? "Calma, tudo vai se resolver." O pai do namorado veio conversar com ela oferecendo dinheiro para o aborto. "Não, não quero abortar!". Mas destruir o futuro de um jovem com uma carreira tão brilhante pela frente? O namorado a chama para passear e a empurra na frente de um ônibus. Um pedestre ajuda a moça, que por sorte, não sofre nada de mais grave. Denunciar uma família poderosa como a dele? Nem a família dela a apoia, afinal ela foi burra e vadia de abrir as pernas assim pro namorado. O jeito é fugir e criar o filho sozinha. Louca.

Outra foi casada por anos e como tinha boas condições financeiras, sempre investiu na carreira do marido. Tinha dois filhos e largou tudo para viver os sonhos dele ao lado dele. Colocou toda a sua força e seu dinheiro naqueles sonhos. Ele aproveitou e usou tudo que podia, levou ela e os filhos pra viver na Europa. Era o sonho dele. Quando o dinheiro dela acabou ele resolveu ir embora. Afinal, ela não podia mais financiar os seus sonhos. Ele era parasita, psicopata, mas ela levou meses para perceber isso. Ele sugou tudo que podia dela e depois deu as costas para os próprios filhos, deixando-os na sarjeta. E ainda infernizou a vida dela: perseguições, agressões físicas e verbais. Não quer mais sustentá-lo, então vai sofrer. Infernizou tanto, que ela teve que fugir com os filhos de volta ao seu país. Fugir da Europa, com duas crianças? Louca.

Trezentas. Trezentas histórias tão únicas e ao mesmo tempo tão similares. Trezentas lutando com um ex-marido, um ex-namorado, um pai, uma mãe, um padastro, um chefe, um colega de trabalho. Trezentas lutando para terem seus direitos respeitados. Trezentas lutando para terem o direito de serem mulheres em um mundo patriarcal. Trezentas lutando contra o mundo, porque para o mundo, elas são loucas. 

Trezentas que salvam a vida de trezentas. A fuga, a doação, a ajuda psicológica, financeira, jurídica, o apoio moral, o simples espaço para ser quem são sem medo de serem taxadas de loucas. Afinal, ali, todas são loucas. Todas são sobreviventes e se identificam umas com as outras. Um grupo de trezentas mulheres, um alicerce. Que salva-vidas. Que muda destinos. Trezentas juntas. Deusas, feiticeiras. Loucas.




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