Você tem um registro de nascimento, tem um nome, uma data de aniversário, uma identidade, uma história sobre a sua origem. E vive trinta e quatro anos acreditando naquilo. Passa trinta e quatro anos contando a história que lhe contaram. E aí você descobre que era tudo mentira...
Até 2014, eu comemorava meu aniversário no dia 10 de setembro, achava que era virginiana, que tinha nascido em Brasília e que era neta de italiano e bisneta de espanhol. Sempre fui muito ligada à astrologia e achava que algumas coisas no meu signo não batiam nada comigo, exceto pela característica do perfeccionismo virginiano, um traço forte na minha personalidade. Na minha certidão, apesar da minha data de nascimento constar 10 de Setembro de 1980, o registro tinha sido feito apenas em Junho de 1981 e eu sempre achei isso um pouco estranho. Quando questionava a minha mãe ela dizia que tinha sido porque o meu pai demorou muito para ir me registrar por problemas burocráticos, porque também constava na minha certidão que eu tinha nascido em casa. E as fotos de mim bebê, só começavam em 1981, porque ela dizia que tinha perdido o álbum das fotos de quando eu era recém-nascida. Ou seja, tinha algumas informações ali que não batiam, que eu achava estranho, e aquele sentimento de que provavelmente eu tivesse sido adotada sempre me acompanhou, desde que eu me entendo por gente. Esse sentimento vinha mais de uma sensação de peixe fora d'água, porque nunca me identifiquei com absolutamente nada nos meus familiares. Mas existem tantos casos de "ovelhas negras" da família, que acabei me acostumando por ser uma dessas pessoas, a ovelha negra, a inadaptável, a rebelde sem causa.
O meu relacionamento com a minha mãe sempre foi, na verdade, muito complexo, desde os primeiros anos da minha adolescência. E quando as pessoas me diziam que era assim mesmo, que o dia que eu fosse mãe eu a entenderia, eu tentava acreditar nisso, mas quando fui mãe aconteceu justamente o contrário. Comecei a questionar ainda mais o comportamento dela, suas atitudes e a forma como ela agia comigo. Eu sabia que tinha algo de muito errado, mas não sabia exatamente o que...
Foi só em 2014 que a verdade começou a se revelar. E foi por causa de uma foto que coloquei no Facebook (benditas redes sociais), onde apareciam meu filho e meu pai e eu citava que os olhos azuis do meu filho vinham do avô. Uma filha do primeiro casamento do meu pai comentou então nesta foto: "Como assim? Você não sabe a verdade?" e depois um irmão dela também colocou em um comentário: "???????". Pronto, foi o suficiente para aquela minha dúvida sobre ter sido adotada se tornar algo concreto. No mesmo dia, questionei essa minha "meia-irmã" sobre o seu comentário e ela me disse que eu deveria ir atrás da verdade, que eu deveria conversar com meus pais, pois eu até podia ter descendência italiana e espanhola, mas eu não tinha nascido em Brasília, e sim no sul do Brasil. Nesta época, eu estava viajando com a minha família, no projeto Família a Bordo, e apesar de me intrigar muito com a revelação da minha irmã, o meu companheiro achou que aquela história era muito fantasiosa, que provavelmente era uma intriga de alguém invejoso, que não deveria atrapalhar a nossa viagem, os nossos planos... Tentei esquecer o assunto e seguimos com a nossa viagem, que terminou com a nossa mudança para Portugal. Mas como esquecer algo assim tão revelador? Ok, ser adotada não é nenhuma coisa do outro mundo, tanta gente é, e como eu sempre desconfiei, se fosse verdade mesmo seria até um alívio para mim... Mas como saber a verdade? Porque quando eu questionei uma vez o meu pai, em uma conversa um ano antes daquela foto, ele me negou que eu tivesse sido adotada. Então por que minha irmã diria aquilo?
Passei o final daquele ano com essa ideia na cabeça e comecei a questionar outros familiares. Foi então que as coisas foram se revelando:
"Sim, você foi adotada, sua mãe lhe pegou no sul, ela queria muito uma menina, mas como não podia mais engravidar, ela lhe adotou. Mas aposto que ela te ama muito, porque ela sempre quis ter uma menina".
"Sua mãe teve que retirar o útero quando seu irmão nasceu, porque teve complicações. Ela queria uma menina, aí quis adotar, mas seu pai não queria, então ela 'deu um jeito'. Ela se envolveu com uma amiga meio barra-pesada que 'arrumava' crianças no sul e apareceu com você em Brasília. Quem cuidou de tudo foi o advogado da família, que era muito amigo dela, mas ele já faleceu há muitos anos. Era ele que sabia da história toda. Mas pelo que me lembro, a sua mãe recebia até cartas de ameaças dessa mulher, que tentou chantageá-la depois. Você provavelmente era a irmã caçula de 12 filhos, e talvez até tivessem gêmeos entre seus irmãos. Acho que você nasceu em Foz do Iguaçu em 9 de Julho, não sei se de 1979 ou 1980. Ninguém sabe ao certo como ela fez. Se ela te comprou, te roubou, ou o que foi. Só sei que não foi uma adoção legal. Seu nome acho que era Janaína..."
Essas revelações, vindas de parentes muito próximos a minha mãe, foram um grande choque para mim, ao mesmo tempo que eram respostas a muitas dúvidas e acontecimentos de toda a minha vida. Mesmo sabendo que tinha algo errado, eu não imaginava que podia ser tão errado. Aliás, sim, eu podia imaginar qualquer coisa vindo da minha mãe, porque ela já tinha me provado do que era capaz, tanto que eu não falava com ela já fazia mais de três anos. De repente, me vi como uma personagem de novela das oito, envolvida em uma história cheia de mentiras e intrigas. E se eu tivesse sido roubada? Como mãe, fiquei imaginando o sofrimento da minha mãe biológica, que pode ter me perdido e que, se ainda for viva, pode ainda estar sofrendo, ainda com a esperança de um dia me encontrar... Eu também posso ser filha de alguém muito pobre que quis me vender, ou posso ser filha de uma prostituta que me abandonou. Seja qual for a história, meu único desejo era saber a verdade, é um direito meu. O primeiro impulso foi ligar ao meu pai e questioná-lo por que ele me mentiu quando lhe perguntei da adoção. Quando confrontei-o por telefone, dizendo que já sabia a verdade, ele confessou, me pedindo desculpas pela mentira, mas ele tinha prometido que nunca me contaria nada. Mas sim, ele confirmou que a minha mãe adotiva 'apareceu' comigo em Brasília, que ele só sabia que ela tinha me pego no sul, mas não tinha ideia de como ela tinha feito isso. Ela lhe disse que tudo estava resolvido e que bastaria eles me registrarem. Ele me levou então a um pediatra que "chutou" a minha idade, dizendo que eu devia ter perto de um ano e eles fizeram uma certidão de nascimento com todos os dados falsos. Ter a confirmação disso foi ainda mais atormentador para mim, e foi montando o quebra-cabeças na minha mente. Janaína? Apesar de não achar nada demais nesse nome, eu sempre o utillizei em todas as minhas brincadeiras de infância, talvez fosse o meu subconsciente que o guardou na memória. Ser do sul? Eu nunca me senti pertencente ao Rio de Janeiro, apesar de ter sido criada lá e quando fui morar no Rio Grande do Sul, me identifiquei muito com aquela terra. Não conheço Foz do Iguaçu, mas sempre tive uma atração especial por toda a região sul do Brasil. E no fim eu sou do sul... Não contei nada a ninguém, apenas parei para conversar sobre tudo aquilo com meu companheiro. E foi então que outras verdades começaram a surgir...
Quando você espera que a pessoa que está ao seu lado por quase dez anos, a pessoa para quem você dedicou 1/3 da sua vida te apoie em um momento tão difícil, o que essa pessoa faz? Ela diz que você apenas tem que "superar" os traumas e seguir adiante, porque os seus problemas não podem atrapalhar os planos dela... É fato que já estávamos em crise há alguns meses, pois as dificuldades que enfrentamos na nossa mudança para Portugal começaram a revelar algumas coisas que antes eu não conseguia perceber. E foi essa minha "crise" pessoal, esse perder o chão sobre a minha origem, ficar no escuro, sem saber absolutamente nada do que realmente aconteceu, que desencadeou uma crise ainda maior entre nós. Eu estava sozinha, sem ninguém com quem pudesse apenas conversar sobre aquele turbilhão de emoções que me assombravam. Tentei seguir firme, pela família, e em 2015 tive uma experiência muito estranha em relação ao meu aniversário: no dia 9 de Julho estávamos em Paris, em uma viagem onde tentávamos recuperar a relação, e, apesar de não termos condição alguma para comemorações, fingimos que era meu aniversário e recebi os parabéns dos meus filhos. Mas, além desta incerteza da data de nascimento, eu tinha uma incerteza ainda maior, que era sobre estar ao lado de alguém que não se importava com o que se passava comigo. Alguém que não me amava de fato, mas amava a vida que conseguia ter comigo. E foi na minha data de aniversário falsa, o antigo 10 de setembro, que chegou o ponto final, quando peguei os meus filhos pelo braço, com a roupa do corpo, e vim embora para Lisboa, depois de algumas semanas da nossa volta da viagem de tentativa de recuperação. Naquele dia, ainda recebi os parabéns de muitas pessoas, afinal era a data que eu passei trinta e quatro anos comemorando... Ainda cheguei a, uns dias depois, receber dos meus filhos um bolo de aniversário com velinhas, para cantarmos o parabéns, já que não tínhamos feito isso em Julho.
Após muito tempo para digerir tanta informação, para assimilar todas as verdades que me surgiram em um ano, depois de uma vida inteira cercada por mentiras e mentirosos, eu finalmente consegui me assentar e me tranquilizar com os fatos. Conversando com alguns amigos mais chegados sobre tudo isso, alguns disseram que eu deveria escrever um livro, e isso já foi feito. Outro amigo, que soube recentemente da história, emocionou-se e me disse que não á algo que a gente simplesmente possa enterrar, como o meu ex-companheiro me sugeriu. O significado de "mentira" ganhou uma conotação totalmente diferente na minha vida. Eu nunca gostei de falsidade, sempre tive problemas para lidar com pessoas mentirosas, e agora ainda mais busco me cercar apenas de gente que tem a capacidade de falar a verdade, seja ela qual for. Também hoje em dia, acabo por contar a verdade a todo mundo, não tenho mais medo de falar nada, nem vergonha do meu passado. Por isso, apesar de algumas pessoas mais chegadas já saberem dessa história, eu decidi escrever sobre isso e contar o que aconteceu, porque esse ano decidi comemorar meu aniversário na data provável do meu nascimento, o 9 de Julho. E alguns amigos ainda se confundem. Como assim, não era Setembro? O signo de câncer tem uma infinidade de características da minha personalidade, me define e me descreve quase que na perfeição. E, mesmo não tendo certeza da data, ela é mais próxima da verdade do que o 10 de setembro, inventado em um registro falso.
E hoje completa-se uma semana que comemorei pela primeira vez o meu aniversário em Julho. Foi uma sensação muito boa, porque no ano passado foi como se eu não tivesse tido aniversário. 36 anos e a gratidão por ter descoberto a verdade, antes tarde do que nunca. A gratidão por ter tudo acontecido da forma como aconteceu, porque no fim das contas, se a minha mãe adotiva não tivesse me levado para Brasília e me criado no Rio de Janeiro, eu provavelemente não estaria onde estou hoje. Não me arrependo de nada do que vivi até aqui e não posso reclamar: chego aos 36 com uma filha de 12, que é minha melhor amiga, minha companheira eterna, e um filho de 5, que é o meu príncipe, sempre pronto para me alegrar. Comemoro este meu primeiro aniversário "real" com a certeza de que os meus projetos acontecerão, porque dependem da minha força de vontade e da minha fé, que não me faltam nunca... Gratidão por ter superado toda a mentira que me envolvia, por ter tido força para encarar todo este turbilhão emocional e me mantido sã para continuar criando meus filhos. Chego aos 36 com a gratidão de já ter podido fazer muitas vezes o que mais amo na vida: viajar e ir a shows, e com a certeza de que ainda os farei muito mais...
Na verdade, para quem diz que a vida começa aos 40, eu tenho que discordar, porque ainda faltam 4 anos para eu chegar lá e já vivi várias vidas dentro de uma... E, apesar de ainda não saber a minha origem, hoje talvez esteja vivendo a melhor de todas as minhas vidas: uma vida de verdade, de liberdade e de amor...
Querida, meu grandissíssimo abraço de ternura (e identificação) para ti.
ResponderEliminarA busca pela verdade nem sempre é fácil, mas é, sim, libertadora! Te admiro ainda mais. Grande beijo (também desde Portugal, mas mais ao norte) ;-)
Obrigada Bea, 'sentir' o teu abraço faz-me muito bem! Continuarei a minha busca, mas agora com o coração livre... Um dia desses podemos nos encontrar, afinal, o norte é logo ali :)
EliminarAdoraria, querida! Estou em Braga. Pretendo ir para Lisboa em agosto. Te aviso!
ResponderEliminarMais beijinho
Grazi, a verdade é realmente exibida. Por mais que se tente, ela não se contenta em viver escondida. Ela quer aparecer e ser apresentada. É sempre libertadora e oferece mais possibilidades. De toda esta história pude ver o quanto foi amada em toda a sua vida. Vc não contou os detalhes mas sua mãe adotiva deve ter passado por muita coisa para ter vc com ela. Tudo o que vc passou te transformou nesta mulher forte e guerreira, que conhecendo a verdade consegue lidar ainda melhor com o que ainda vier. Muita força Pq, como vc falou, sua história esta só começando :)
ResponderEliminarObrigada Let... A questão sobre a minha mãe adotiva é ainda muito mais profunda, eu realmente não entrei em detalhes quanto a ela, mas mesmo que ela tenha passado por muito, acho que nada justifica a mentira. E ela nunca foi capaz de demonstrar nem um tipo de afeto, amor, pelo contrário... Mas sim, tudo que vivi me transformaram no que sou hoje, afinal somos fruto de nossas experiências e de como lidamos com elas.... Um beijo!
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